A COMÉDIA DO EMPREGO
peça decomposta em três movimentos

Pierre-Yves Millot

tradução : Georgina Rocha
título original : La Comédie de l’emploi



PERSONAGENS

Maria

Fausto

Hortênsia



PRIMEIRO MOVIMENTO
Cenário frio, sóbrio e realista: uma secretária, um armário de ferro, um cadeirão por detrás da secretária, duas cadeiras à frente. Devemos ter a impressão que Fausto vem para uma entrevista de emprego. Maria desempenha o papel de “entrevistadora”. De vez em quando, deve ouvir-se um ligeiro barulho que parece vir de trás da parede. Maria olha para o vazio durante um longo momento. Batem à porta.

Maria: Sim? Pode entrar. O senhor é o número 35, não é?

Fausto: Sim. Bom dia, minha senhora. Estou um bocadinho adiantado…

Ela levanta-se e aperta-lhe a mão.

Maria: Não, não. Está bem assim. Sente-se.

Fausto (indicando uma das cadeiras): Aqui?

Maria: Aqui ou ali, tanto faz.

Fausto (depois de ter hesitado): Bem… então vou-me sentar antes aqui.

Maria (voltando a sentar-se): Bem, estou a ouvi-lo.

Fausto: Aaaa… a que propósito?

Maria: Apresente-se!

Fausto: Ah, pois. Claro. Chamo-me Fausto Manip. Trinta anos, quer dizer, trinta e tais. (depois de uma hesitação) Tenho uma sinusite crónica… mas não sei se lhe devo dizer… E por isso tenho que me assoar muitas vezes… sabe, está sempre a escorrer! As minhas narinas estão sempre a pingar, e se eu não me assoar… mas não é sempre… quero dizer, é crónico. É assim, às vezes, tenho o nariz entupido, outras vezes não. Hoje, por exemplo, os meus canais estão a portar-se às mil maravilhas. Às mil maravilhas! Estão a funcionar como…

Maria (preocupada): O senhor tem problemas respiratórios?

Fausto: Não! Nada disso! Pode ficar descansada. Não é respiratório, não é uma questão de respiração… são os canais do nariz. Mas eu estava a falar disso apenas para me apresentar… não interessa muito…

Maria: Continue.

Fausto: Continuo? Sim, claro. Também há as minhas costas. As minhas costas são um bocadinho fracas, sabe, uma ligeira escoliose, um ligeiro desequilíbrio…

Maria: O senhor não é equilibrado?

Fausto: Sou, claro que sou, mas digamos que… como é que hei-de dizer? … Inclino-me! Pronto, é isso mesmo, inclino-me um pouco. Mas, a senhora bem sabe, a escoliose é uma história antiga… no meu caso, é a perna direita.

Maria: A perna direita?

Fausto: Sim. É a perna direita que é um bocadinho mais comprida. (silêncio) E por isso o pé direito é um bocadinho mais comprido também, não é muito, meio centímetro. Mas mesmo assim incomoda, porque ponho uma palmilha do lado esquerdo, para restabelecer o equilíbrio, pois a minha perna direita é mais comprida. E depois sinto-me apertado no sapato esquerdo, porque a palminha ocupa espaço. Entende? Olhe, veja! (tira o sapato e mostra-lho. Maria permanece impassível) Pronto. (novo silêncio) A senhora não faz perguntas? Maria: Já terminou?

Fausto: Bem… não! (volta a calçar o sapato) É claro que não! Ainda tenho montes de coisas para dizer! Mas não sabia que este género de entrevistas se passava desta maneira, está a ver, imaginava que fosse um diálogo, perguntas e respostas, mas isso não me incomoda, só que não sei muito bem o que espera de mim, que rumo dar às minhas palavras, o que lhe devo dizer. (silêncio, depois, como se tivesse uma ideia súbita) Faço colecção de caixas de ervilhas! Parece estúpido, não é? Mas, pronto, cada um com a sua mania, e eu, olhe, eu é as ervilhas. Tenho 535 modelos diferentes. Aquilo ainda ocupa bastante espaço lá em casa! Pronto… as ervilhas já está… Mas talvez devesse falar-lhe um pouco da minha personalidade, não é? Para a senhora ficar com uma ideia de quem eu sou, não acha? Digamos que tenho um carácter… perfeitamente… como dizer… perfeito! É isso mesmo! Tenho um carácter perfeitamente perfeito! E, além disso, é um carácter bem definido, sabe, não há nada de indefinido no meu carácter… de facto, acho que saio mais à minha bisavó paterna, uma mulher muito digna e muito respeitada, sabe… Pronto… o carácter já está… podia dizer mais qualquer coisa mas… talvez não valha a pena, não acha? Então, pronto… (silêncio) É com certeza necessário dizer-lhe o que sou capaz de fazer? Pois, é que eu sei fazer muitas coisas, montes de coisas!

Maria: Por exemplo?

Fausto: Por exemplo? Ora bem… ora bem… (tenta encontrar) Cá está! Olhe! (levanta-se e põe-se a girar os polegares) e para o outro lado também (gira-os no outro sentido). No sentido das agulhas de um relógio … no sentido trigonométrico… no sentido das agulhas de um relógio… no sentido trigonométrico… para um lado… para o outro lado… e a senhora pode constatar que o efeito não é o mesmo para ambos os lados… (silêncio – volta a sentar-se) Bem, se calhar estava à espera de outra coisa… Se calhar devia ter trazido alguns documentos, pois, era isso que eu devia ter trazido: fotografias, recordações, cartas, documentos administrativos… Ah!... Espere… (tira a carteira e procura lá dentro) Olhe, veja este cartão de visita! Oh, já deve andar a rebolar na minha carteira há algum tempo… o papel está amarrotado… mas já viu? (estende-lhe o cartão) … não é uma pessoa qualquer!... éramos da mesma turma, no liceu, e um dia, voltámos a encontrar-nos, talvez dez anos depois, e ele deu-me este cartão. Ainda não era célebre como agora, mas já se via que ia ser um homem importante. Alias, isso vê-se logo pelo cartão, não acha? A senhora reparou no tamanho das letras! E no fino rebordo preto em toda a volta! É o cartão de um futuro homem célebre, disso, não há dúvida… Aliás, pelo modo como me dirigiu a palavra, via-se logo que não era uma pessoa qualquer, não era nenhum simplório!... Ora bem, mesmo assim cumprimentou-me… e deu-me o cartão dele… Eu é que nunca vou ter um cartão assim… Pronto! Ainda tenho muitas outras coisas… Deixe-me ver… (volta a pôr o cartão dentro da carteira) Isto, é uma velha factura de hotel… ah, sim! Quando eu fui a… bem, não, não pode ser isso… ora deixe-me ver… Hotel do Escriba… não vejo realmente onde é que isto fica… ah, já sei! Já sei onde é! (gritando) Já me lembro! (recuperando o controlo perante o olhar glacial de Maria) É extraordinário como nos conseguimos lembrar destas coisas, assim… era um pequeno hotel numa aldeia da montanha. Eu estava com… enfim, é estranho… quando voltamos a pensar nisso… traz-nos recordações… (volta a arrecadar a factura) … ora, que mais é que eu tenho aqui… os meus documentos, o meu bilhete de identidade, com a minha fotografia… sim, já é um bocadito antiga… dez anos, no mínimo… mas…

Maria: O senhor tem dinheiro?

Fausto: O quê?

Maria: Na sua carteira, o senhor tem dinheiro?

Fausto: Bem, sim… devo ter…

Maria: Quanto?

Fausto: Ora bem… olhe… tenho…

Maria: Dê-me isso imediatamente. (pega no dinheiro) Continue…

Fausto: Mas…

Maria: Então? Continue! Está à espera de quê para continuar?!

Fausto: Quer dizer… o meu dinheiro… a senhora vai devolver-mo? (silêncio) Pronto, já que tenho de continuar… não sei o que hei-de dizer mais… diga-me o que devo dizer.

Maria: O senhor quer que eu lhe diga o que deve dizer?

Fausto: Quero.

Maria: Jura?

Fausto: Juro.

Maria: Outra vez!

Fausto: Juro!

Maria: E o que é que me garante que está a ser sincero?

Fausto: Minha senhora, eu sou sincero! Juro! Juro que sou sincero! Juro que digo o que penso! Juro que farei o que disse! Juro! E volto a jurar! Tudo o que me pedir para fazer, farei! Tudo o que exigir de mim, farei! Todas as suas ordens, executá-las-ei! Todos os seus pensamentos tornar-se-ão meus! Todos os seus desejos, satisfazê-los-ei!

Maria: Ponha-se de gatas.

Fausto (atrapalhado): O quê?

Maria: Ponha-se de gatas.

Fausto: Mas eu…

Acaba por se pôr de gatas.


Maria: O senhor vai dar uma volta à cadeira, de gatas.

Fausto: Mas…

Maria: Vá!

Fausto dá uma volta de gatas.

Maria: Muito bem. E agora, vai dar uma volta, mas para o outro lado. Isso. E de novo para o outro lado. Sentido trigonométrico… sentido dos ponteiros de um relógio… sentido trigonométrico… sentido dos ponteiros de um relógio… (ele continua a andar à volta) Vá, mais depressa! Pare! Mude de sentido! Vá, vá! Nada de atrasos! Há que rodar!... Pare! Ficamos por aqui. (Fausto pára, exausto, tenta controlar a respiração) Muito bem. O senhor é obediente.

Fausto: A senhora sabe, eu faço o que me dizem para fazer.

Maria: Está bem. Mas também se deve ter um certo sentido crítico.

Fausto: Ora essa, no que toca a ser crítico, não consegue encontrar melhor. Eu sou capaz de criticar tudo, até me acontece criticar as minhas próprias críticas, está a ver até onde posso chegar!

Maria: Até onde?

Fausto: Até onde? Ora bem… Posso chegar muito longe… Posso chegar muito, muito longe…

Maria: E o sentido de iniciativa?

Fausto: Ora essa, no que toca a iniciativas, não consegue encontrar melhor. Porque para ter iniciativas… ora bem, no que toca a ter iniciativas…

Maria: Por exemplo?

Fausto: Por exemplo? Quer que lhe dê um exemplo de uma iniciativa que tive… ainda há bem pouco tempo… exemplos, tenho montes deles… olhe! Ainda foi ontem, estava eu a tomar um café – foi ontem de manhã – ora bem, estava eu então a tomar o café – por volta das sete e meia – ao balcão, e ali mesmo, quando nada deixava prever que eu ia ter uma iniciativa, quando, sem dúvida, ninguém na mesma situação que eu a teria tido, ora bem, ali mesmo, precisamente, naquele café, ao balcão, enquanto bebia o meu café, sim senhora, tive uma, sim, tive uma iniciativa. Pronto! Está a ver, isso de ter sentido de iniciativa, é comigo.

Maria: E que iniciativa foi essa?

Fausto: Quer que lhe descreva exactamente a iniciativa que tive? Bem, estava eu então a beber o tal café, encostado ao balcão…

Maria: Ao balcão?

Fausto: Claro, ao balcão… Até estava a ler o jornal, ao mesmo tempo… ao mesmo tempo que estava ao balcão… estava a beber café e a ler o jornal…

Maria: O jornal?

Fausto: Sim, o jornal, e depois, ao mesmo tempo que tomava o meu café, e que lia o jornal, estava na conversa com o dono. Fala-se de tudo um pouco, está a ver… de desporto, de política… ele é mais da direita, eu sou mais de esquerda, e então rezingamos um bocadito, está a ver, assim para passar o tempo…

Maria: O tempo?

Fausto: Pois claro, porque de manhã, é preciso conversar… repare, o que dizemos, não é lá grande coisa, não é profundo, fazemos apenas os nossos comentários, enfim, sabe como é, quando se fala de política num café…

Maria: Num café?

Fausto: E então… a tal iniciativa… essa famosa iniciativa… que eu tive… que eu tive e que veio mesmo a calhar… foi… (mudando de tom) Mas não sei se devo contar-lhe isto tudo… enfim, quero dizer… talvez não seja disto que lhe devo falar… (longo silêncio) Talvez fosse melhor falar-lhe de outra coisa… (longo silêncio) Falar-lhe de… (longo silêncio)

Maria: E as suas relações com os outros?

Fausto: As minhas relações? Com os outros? Quer dizer, os outros, os outros todos, os amigos, as relações, aqueles que conhecemos, aqueles com quem nos cruzamos, com essas pessoas todas… Ora bem… São muito boas! São excelentes as minhas relações com os outros, com os outros aqui, com os outros além, com todos os outros aqui e além…

Maria: E o sexo?

Fausto: O sexo? Bem… o sexo, tenho mesmo que falar disso…bem, ouça, quanto ao sexo, para ser franco, não tenho problemas, para mim é canja, o sexo, enfim, quero dizer, essas coisas…

Maria: Dispa-se.

Fausto: Quer que me dispa? Mas…

Maria: Dispa-se.

Fausto: Está bem. Pronto… Se é isso que a senhora quer…

Fausto despe-se. Maria dirige-se para o armário e tira lá de dentro qualquer coisa parecida com um pijama castanho.

Maria: Vista isto.

Fausto: Tenho que vestir isso? Pronto… Se é isso que a senhora quer…

(Ela estende-lhe a roupa e ele veste-a)


Maria: Sente-se no chão.

Fausto (enquanto se senta): Tenho que me sentar no chão? Pronto… Se é isso que a senhora quer…

Maria: Como é que se sente?

Fausto: Bem… Um pouco esquisito… É realmente esquisito, tudo o que me pede para fazer…

Maria: Acha isto esquisito?

Fausto: Não, não… não era isso que eu queria dizer… mas, pronto… não estava à espera disto… mas, para dizer a verdade, porque não… mas pronto… mudar de roupa, assim…

Maria: Esta roupa tem nome.

Fausto: Ai tem?

Maria: É a roupa das pessoas imbecis.

Fausto: Ai é?

Maria: Damo-la às pessoas como o senhor, aos imbecis, porque o senhor é um imbecil, sabia? O senhor faz parte daquela categoria de pessoas que não valem nada, que desonram a nossa sociedade pelo simples facto de existirem, desses parasitas que não sabem fazer nada, desses zeros à esquerda que nos atrapalham… Não temos nada para si: Nada! Nada para os imbecis! Imbecil! Seu imbecil! Ostentar assim a sua incompetência, a sua ignorância, a sua incapacidade, a sua fraqueza… Um verme! Um verme, sim, é isso que você é, é esse o seu VALOR… (Maria aproxima-se dele e coloca-lhe as mãos na cabeça, carregando. Fausto desaparece pouco a pouco) Vá, seu verme. Volta para a terra, enterra-te na lama para não te vermos mais, e desaparece, desaparece para o bem de todos, desaparece na lama de que és feito…

(Maria esmaga-o agora com o pé. Fausto desaparece completamente. Volta para a sua secretária, rasga o dossier à sua frente e deita-o para o lixo)




[...]

fin




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