AS PEÚGAS

Pierre-Yves Millot

tradução : Georgina Rocha
título original : Les Chaussettes



Personagens:

Emílio Peúga (marido de Hortênsia Peúga)

Hortênsia Peúga (mulher de Emílio Peúga)

Afonso Peixe (homem da rua)



Emílio Peúga está sozinho, sentado numa cadeira. À sua frente, cinco ou seis pares de peúgas.

EMÍLIO: O que importa, é escolher o par de peúgas certo. (Experimenta umas.) Peúgas azuis de dia, trazem futuro de alegria! (Olha para os pés.) Sim mas… peúgas azuis para hoje… para um dia como hoje… será realmente adequado?... Vejamos… vamos antes experimentar estas… (Experimenta-as.) Peúgas verdes calçadas, para a festa com as namoradas! Sim mas… tenho que falar com a minha mulher… ela detesta o verde. A um ponto tal que é difícil imaginar. O verde representa para ela o cúmulo da aberração, o paroxismo do mau gosto… É assim, a minha mulher, cheia de preconceitos. (Experimenta um terceiro par.) Peúgas pretas na perna, a esperança será eterna! (Levanta-se, dá alguns passos, olha-as com um sorriso de satisfação, depois parece mudar bruscamente de ideias.) Não! Nada disto! Nem pensar! Então? Não sou nenhum palhaço! Tenho direito a um mínimo de respeito! Enfim! Não sou uma pessoa qualquer! Emílio Peúga! Sim, senhor! Chamo-me Peúga, como uma peúga! O acaso tem cada coisa!... (Tira as peúgas e atira-as, depois experimenta um novo par.) Peúgas brancas usar, sinal de sorte no ar! Cá está! Exactamente o que eu preciso! Um par de peúgas… brancas!

(Entra Hortênsia Peúga)

HORTÊNSIA: Então, já está? Já escolheste as tuas peúgas? (vendo os pés do marido) Olha, calçaste as peúgas brancas? (ar reprovador) Peúgas brancas usar, é sinal de muito azar!

EMÍLIO: Nada disso! É: Peúgas brancas usar, sinal de sorte no ar!

HORTÊNSIA: Isso é que não! É: Peúgas brancas usar, é sinal de muito azar! Olha, de qualquer modo, faz como quiseres, são as tuas peúgas, o problema é teu; é o teu problema, é a tua vida, são as tuas peúgas.

(Enquanto isto, Emílio apanha as peúgas espalhadas e arruma-as.)

Então, já acabaste a tua cafeteira?

EMÍLIO: Hum, não… estou com problemas com o bico… com o porta-filtro foi fácil, mas agora… não sei porquê… bloqueei! … bloqueei no bico.

HORTÊNSIA: Tem que haver sempre alguma coisa que te bloqueia! Já com o radiador a gasolina, bloqueaste no depósito. E já nem falo do descasca abóboras, da caneta auto apagadora, do fio para cortar bifes tártaros, do avião sem reacção, da torradeira de batatas, do desoxigenador de ar poluído, do acelerador de crepúsculos, do vaporizador de eclesiásticos ou do abre-latas com hélices!... Porque não telefonas ao Mestre Canário?

EMÍLIO: Sim! é uma óptima ideia… sim… vou fazer isso… (Levanta o telefone e faz o número.) Estou?! Seria possível falar com o Mestre Canário, por favor… ah… sim… Saiu?... Morreu?! Ora bolas… sim… está bem… mas tem a certeza que… Sim, claro… está bem… Adeus, minha Senhora… e mais uma vez os meus… Desligou! Aquela sacana! Desligou, a sacana!

HORTÊNSIA: Então, Emílio! Quem era?

EMÍLIO: Era a mulher dele. Ele morreu.

HORTÊNSIA: Quem? O Canário? O Canário morreu? Não pode ser! Ele até nem era do género de morrer sem avisar… Como é que vais fazer com a tua cafeteira?

EMÍLIO: (subitamente desanimado) Acho que vou desistir. Paciência! Bebemos chá de jasmim ou laranjada gelada.

HORTÊNSIA: Ou petróleo em barril!

EMÍLIO: Ou xixi de girafa!

HORTÊNSIA: As cataratas do Niágara!

EMÍLIO: Líquido pancreático, acetona, sangue de bispo, adrenalina!

HORTÊNSIA: Essa coisa bebe-se?

EMÍLIO: … sumo de peúgas!

Longo silêncio

EMÍLIO: (articulando lentamente) Sumo de peúgas.

Tira as peúgas e torce-as como se tentasse extrair um líquido delas.

HORTÊNSIA: Torce com mais força, vai!

EMÍLIO: Estou a torcer, mas não sai!

HORTÊNSIA: Vá, faz mais um esforço!

EMÍLIO: Irra! Não estás a ver como eu torço?!

HORTÊNSIA: Então, vem ou não vem?

EMÍLIO: Caramba! Estou a torcer, está bem?!

HORTÊNSIA: Pois sim… mas sumo é que isso não tem!

Silêncio.

EMÍLIO: Estás a ver… é das peúgas… Eu já devia saber que as peúgas brancas… (enervado) Pronto! Um dia estragado! Arruinado! No entanto este dia anunciava-se perfeito. Havia um não sei quê no ar que pressagiava coisas boas, não era?

HORTÊNSIA: Eu não senti nada.

EMÍLIO: É evidente que não. Nós não sentimos as mesmas coisas. No entanto, havia qualquer coisa no ar, disso tenho a certeza.

HORTÊNSIA: Se estava no ar, ainda lá deve estar!

EMÍLIO: Não necessariamente. Há coisas que se evaporam, minha senhora, há coisas que desaparecem, minha senhora, há coisas que se dissipam no vazio, minha senhora, há coisas que… (procurando as palavras) … que…

HORTÊNSIA: Sim, realmente, há muitas coisas! (dirige-se para o armário e abre a porta; um monte de objectos heteróclitos cai lá de dentro.) Aqui tem! Todas as coisas do Excelentíssimo Senhor! E estas, não correm o risco de se evaporar!

EMÍLIO: As minhas invenções! Cuidado! Vais estragá-las!

HORTÊNSIA: De qualquer modo, nenhuma delas funciona!

EMÍLIO: São protótipos. Já te disse centenas de vezes que os protótipos não são feitos para funcionar.

HORTÊNSIA: São feitos para quê?

EMÍLIO: São feitos para… São protótipos, pronto. E alguns até funcionam.

HORTÊNSIA: Ai sim? Quais?

EMÍLIO: Olha… Por exemplo! A cana de pesca! Queres que te mostre como funciona? Olha, com isto podemos pescar directamente da janela! Desdobra a cana de pesca e lança a linha pela janela. Instantes depois.

HORTÊNSIA: Já morde?

Silêncio.

EMÍLIO: Realmente… esta gente toda que não pára de morrer… acaba por ser triste!...

HORTÊNSIA: Estás a pensar no Canário?

EMÍLIO: No Canário e nos outros! É um monte deles!... (Puxa de súbito a cana de pesca como se estivesse qualquer coisa a morder o anzol.) Olá! Este é dos grandes! Eu percebo disto! Bolas, não consigo puxá-lo! Anda aqui ajudar-me, Hortênsia! Este é dos graúdos! Estás a ver que a minha cana de pesca funciona! Vá, anda!

HORTÊNSIA: Já vou! Já vou!

Agarram-se os dois à cana de pesca. Algum tempo depois Afonso Peixe aparece no fim da linha. Entra pela janela.

EMÍLIO: Ei! Quem é este?!

HORTÊNSIA: Mas que bela pescaria!

EMÍLIO: O que é você que está aqui a fazer?

AFONSO: O que é que eu estou aqui a fazer?! Pensa que vim de livre vontade, é?! Afinal foi você que me pescou! Estava a andar tranquilamente na rua e zás! Um anzol prende-se na gola do meu casaco e ali estou eu içado da terra! Levado para o céu! Ainda tentei agarrar-me a uma senhora gorda que ia a passar, mas não deu! Descolado do chão! (subitamente poético) A voar no hiperespaço! Eis-me navegando ao lado dos cometas, cabelos nas estrelas, brincando com as galáxias, fixando o vazio com os meus olhos esbugalhados! Ah, meus amigos! Que perfume! E eu ali, flutuando naquela volúpia… Que ligeireza! Que leveza!

HORTÊNSIA: Vamos verificar isso imediatamente. Emílio, vai buscar a balança.

(Emílio traz uma balança.)

EMÍLIO: Ponha-se aqui em cima. Vamos verificar isso imediatamente.

Afonso Peixe põe-se em cima da balança. Emílio e Hortênsia inclinam-se para verem o ponteiro.

HORTÊNSIA: Olha! O ponteiro não se mexe! Zero quilos!

EMÍLIO: Zero quilos?

HORTÊNSIA: Zero quilos!

AFONSO: Zero quilos?

HORTÊNSIA: Zero quilos!

OS TRÊS JUNTOS Zero quilos!!!

Silêncio.

AFONSO: A sua balança está avariada.

EMÍLIO: Como é que você sabe? O senhor é especialista?

AFONSO: Especialista, é a palavra certa. Conserto balanças, tectos, porta-moedas, toranjas, maçãs de Adão, terrenos de caça, jantares de fim de ano, saídas para o campo, esquecimentos desastrosos, encontros inopinados, aplausos exagerados, hortênsias, e acima de tudo… cafeteiras!

EMÍLIO: Não pode ser! Vem mesmo a calhar! O destino tem cada coisa!...

AFONSO: A sua cafeteira está avariada?

EMÍLIO: Quer dizer… não, não é isso… sabe, estou a fabricar uma cafeteira, mas… pronto… para dizer a verdade, bloqueei no bico…

AFONSO: Não me admira nada!

EMÍLIO: Ai não? Porquê?

AFONSO: Porque é a parte mais difícil de conceber. Aparentemente parece muito simples, mas quando pensamos bem no assunto… é quase metafísico.

EMÍLIO: Quase metafísico?

AFONSO: Quase metafísico!

HORTÊNSIA: Quase metafísico?

AFONSO: Quase metafísico. E depois, eu só conserto cafeteiras, daquelas que já funcionaram. Fabricar uma cafeteira é totalmente diferente… É preciso muita imaginação.

HORTÊNSIA: Coisa que ele não tem.

EMÍLIO: Ai é?! Coisa que eu não tenho?!

HORTÊNSIA: Pois. Coisa que não tens.

EMÍLIO: Isso é porque não me conheces!

HORTÊNSIA: Ora, depois de tanto tempo a viver juntos… conheço-te… até à ponta dos dedos…

Olha em direcção dos pés de Emílio. Os outros dois imitam-na. Longo silêncio.

EMÍLIO: Isso é o que tu pensas, mas de facto não me conheces, só conheces o que me apeteceu mostrar-te de mim. A outra parte de mim, aquela que eu guardo só para mim, tem muito mais imaginação que a outra, aquela que tu conheces.

HORTÊNSIA: Ora bem, estou a ouvir-te, inventa-me qualquer coisa, dá-me um pouco do tu que guardas geralmente só para ti…

EMÍLIO: E será que o mereces?

HORTÊNSIA: ( para Afonso) É mesmo presunçoso, não acha?

AFONSO: Estragou-me o casaco.

EMÍLIO: O quê?

AFONSO: Estragou-me o casaco com o anzol. Veja o rasgão que fez! Um casaco tão bonito, um casaco novo… que me tinha legado o meu bisavô. Uma relíquia de família! (subitamente enervado) Está a ver? Não pense que isto vai ficar assim!

(Agarra Emílio Peúga.)

EMÍLIO: Ei, o que é que lhe deu?

Afonso rasga-lhe um bocado da camisa.

EMÍLIO: Ai, a minha camisa!

AFONSO: Está a ver o que acontece quando se perde um pedaço de roupa!

EMÍLIO: O homem é maluco!

HORTÊNSIA: Desde que ele não toque nas tuas peúgas…

Afonso vai sentar-se num canto da sala.

AFONSO: Bem, vou passar pelas brasas… Esta história toda… é cansativo…

Fecha os olhos e começa a adormecer.

EMÍLIO: Olha, agora põe-se a dormir!

HORTÊNSIA: Deixa-o estar, parece cansado… Coitado, se andou a viajar pelo hiperespaço!... Aquilo deve cansar, lá no hiperespaço!

EMÍLIO: Acreditas mesmo que ele esteve no hiperespaço!

HORTÊNSIA: Porque não?

EMÍLIO: Acreditas que entre o momento em que o pesquei e o momento em que entrou pela janela, teve tempo para viajar no hiperespaço?

HORTÊNSIA: Porque não?

EMÍLIO: Pára de dizer: porque não! Argumenta!

HORTÊNSIA: Olha para a cara dele. Achas que ficava com essa cara se não tivesse estado no hiperespaço?!

EMÍLIO: Vou acordá-lo.

HORTÊNSIA: Deixa-o estar.

EMÍLIO: (aproximando-se dele) Ei! Isto aqui não é nenhum hotel!

AFONSO: (acordando com dificuldade) O que é que se passa?

EMÍLIO: Vá! Toca a acordar!

AFONSO: O que é que se passa? O que é que estou aqui a fazer?

EMÍLIO: Não finja que se esqueceu de tudo…

AFONSO: Juro que…

EMÍLIO: E a minha camisa? Se calhar já não se lembra que a rasgou! Eu apanhei-o com a minha cana de pesca, há pouco…

AFONSO: O que é que está a dizer?! Apanhou-me com uma cana de pesca?! (Larga-se a rir.) Com uma cana de pesca! Ah! Ah! Ah! Esta tem muita graça!

EMÍLIO: Claro que sim! Olhe para o rasgão que lhe fiz no casaco!

AFONSO: O quê? O senhor rasgou-me o casaco novo?!

EMÍLIO: Pronto! Lá vem ele outra vez!

AFONSO: O casaco novo que me tinha confiado o meu bisavô no seu leito de morte! Mandou-me chamar junto dele, a mim, um rapazinho apenas, e disse-me, com voz trémula: “Estás a ver este casaco novo... nunca o usei... é novo... é a ti que o confio... é importante... deves usá-lo sempre...”

HORTÊNSIA: E tem-no usado sempre?

AFONSO: Sempre, desde aquele dia!

HORTÊNSIA: Que história tão bonita! Mas, há esse tempo todo... Então, o casaco não é novo?

AFONSO: Foi esta manhã que morreu o meu bisavô.

HORTÊNSIA: Ah, assim já percebo...

AFONSO: Era um grande homem.

HORTÊNSIA: Claro que sim!

AFONSO: Um génio.

HORTÊNSIA: Evidentemente!

AFONSO: Um ser extraordinário.

HORTÊNSIA: Sem dúvida!

AFONSO: Um Deus.

HORTÊNSIA: Com certeza.

EMÍLIO: (no mesmo tom que Afonso) Um repolho!

HORTÊNSIA: Indubitavelmente!

EMÍLIO: Um enorme iogurte!

HORTÊNSIA: Perfeitamente.

EMÍLIO: A peúga maior que existe!

Momento de silêncio. Todos com um ar meio perdido.

HORTÊNSIA: Como é que ele se chamava?

AFONSO: Peixe, como eu.

EMÍLIO: O senhor chama-se Peixe?

AFONSO: Peixe, como ele. Mas ele não conservou o nome muito tempo.

EMÍLIO: Não? Porquê?

AFONSO: Acha que é fácil chamar-se Peixe?!

EMÍLIO: Ora, eu também me chamo Peúga!

HORTÊNSIA: E eu também! Eu também me chamo Peúga!

AFONSO: Ai sim? Os senhores chamam-se Peúga?

EMÍLIO: Emílio Peúga.

HORTÊNSIA: Hortênsia Peúga.

AFONSO: Afonso Peixe.

Trocam apertos de mão.

EMÍLIO: Estava na hora de fazer as apresentações. A sério, falamos, falamos, e nem sequer sabemos com quem estamos a falar! E então o seu bisavô mudou de nome?

AFONSO: Sim. Passou a chamar-se Canário.

HORTÊNSIA: Canário? Mestre Canário?

AFONSO: Esse mesmo.

HORTÊNSIA: Então o senhor é o bisneto do Mestre canário?!

AFONSO: Do falecido Mestre Canário.

HORTÊNSIA: ora essa! É extraordinário! Não é, Emílio?

EMÍLIO: Extraordinário? Convenhamos.

HORTÊNSIA: Mas afinal! O Mestre Canário… a ultima vez que o vimos… tinha… quarenta anos! Não tinha mais…

EMÌLIO: E então?

HORTÊNSIA: Ora bem, este senhor diz que é bisneto dele!

EMÍLIO: Sim, mas a última vez que nós o vimos… foi há séculos!

HORTÊNSIA: Achas?

EMÍLIO: Tenho a certeza! Foi até muito antes da…

HORTÊNSIA: …da?

AFONSO: …da?

EMÍLIO: Sim. Muito antes da…

HORTÊNSIA: Então! Da quê?

EMÍLIO: Ora, és mesmo aborrecida!

HORTÊNSIA: És tu que nos aborreces… não acabas as tuas frases!

EMÍLIO: Porque eu tenho que acabar todas as minhas frases, é?!

HORTÊNSIA: É uma questão de educação. Sobretudo em frente de um convidado. Não é, Senhor Peixe.

AFONSO: Dizem que sim.

EMÍLIO: E se me apetecer ser mal educado? (Para Afonso) Também posso ter vontade de ser mal educado, não é?

AFONSO: Claro que sim.

HORTÊNSIA: Ah! Se o Mestre Canário ainda cá estivesse…

Silêncio.

EMÍLIO: Ao que parece, ele nunca existiu de facto…

HORTÊNSIA: Como assim?

EMÍLIO: Pois é! É isso mesmo que eu disse. Parece que ele nunca existiu, que afinal não era ele que…

HORTÊNSIA: Não era ele que o quê?

EMÍLIO: Não era ele que…

HORTÊNSIA: Então! Ele que o quê?

EMÍLIO: Não era ele que existia.

HORTÊNSIA: Quem é que diz isso?

EMÍLIO: É a porteira, acho eu.

HORTÊNSIA: Se fores acreditar em tudo o que diz a porteira!...

AFONSO: A verdade sai da boca das porteiras.

HORTÊNSIA: E que mais é que diz a porteira?

EMÍLIO: Diz que o tipo que existia, não aquele que morreu mas o que existia mesmo, era de facto uma imagem.

HORTÊNSIA: Uma imagem?

EMÍLIO: Sim, uma imagem. Alguém que não podes tocar, se experimentares, a tua mão passa através dele.

HORTÊNSIA: Um fantasma?

EMÍLIO: Se lhe quiseres chamar assim.

HORTÊNSIA: O senhor Afonso acredita em fantasmas?

AFONSO: Oh, em fantasmas… É muito fácil brincar aos fantasmas… mas sabe… Ninguém ganha nada com essa história…

HORTÊNSIA: Fantasmas! Olhem que história!

AFONSO: Uma história de fantasmas.

EMÍLIO: Uma história esquisita.

Os três ficam em silêncio durante um certo tempo.

EMÍLIO: Já passou um minuto?

HORTÊNSIA: Mas realmente, que história esta!

EMÍLIO: Sabem, eu conheci alguém que se tomava por um fantasma. Fazia: “Uuu! Uuu!”, vivia debaixo de um lençol branco e nunca de lá saía… e nunca se lhe viam os pés! Era mesmo um fantasma a sério!

HORTÊNSIA: Sem peúgas?

EMÍLIO: Sem a sombra de uma peúga!

HORTÊNSIA: A mim, estas histórias, arrepiam-me toda. (Aproxima-se de Afonso.) Esfregue-me as costas, por favor.

AFONSO: Diga?

HORTÊNSIA: Estou toda arrepiada! Esfregue-me as costas!

EMÍLIO: Então! Esfregue-lhe lá as costas que ela está arrepiada!

HORTÊNSIA: Vá lá! Faça o que lhe dizem!

Afonso esfrega-lhe as costas.

HORTÊNSIA: Ah sim…! Aí, sabe tão bem! Assim… sim… Um bocadinho mais abaixo… Mais… Sim, aí, é mesmo aí… Com mais força… hum não, mais força não, deixe ver… insista mais… mais regular… Sim… ah… assim está bem…

EMÍLIO: Ninguém lhe disse para lhe acariciar as nádegas.

AFONSO: Não são as nádegas, é o fundo das costas.

EMÍLIO: Não, não. Eu vi muito bem! Não era o fundo das costas, era o cimo das nádegas!

AFONSO: O senhor consegue distinguir o fundo das costas do cimo das nádegas?

EMÍLIO: Claro que consigo distinguir o fundo das costas do cimo das nádegas! O cimo das nádegas termina exactamente onde começa o fundo das costas. As partes não se sobrepõem, entende? Distinguem-se bem.

AFONSO: Eu acho que o limite é bastante incerto.




[...]

fin




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