PRELÚDIO

Pierre-Yves Millot

tradução : Georgina Rocha
título original : L'Antéscribe



Personagens:

Autor
Actor



Nos bastidores de um teatro.
O actor está sentado numa cadeira, pensativo. Chega o autor.

AUTOR : Boa noite. (Como o outro não responde, pigarreia para se fazer ouvir) Desculpe incomodar, estou à procura… O senhor não será, por acaso, um dos actores desta peça?

ACTOR : O que é que o senhor quer? Quem é que o deixou entrar?

AUTOR : Eu sou o autor da peça.

ACTOR (olhando-o atentamente) : Ai é?

AUTOR : Está com um ar duvidoso.

ACTOR : O senhor não tem… cara de autor.

AUTOR : O quê?

ACTOR : Não… realmente, o senhor não tem cara de autor.

AUTOR : Não entendo… tenho uma cara normal!

ACTOR : O senhor tem uns traços esquisitos, para um autor.

AUTOR : O que é que têm os meus traços? É a primeira vez que me dizem tal coisa!

ACTOR : As pessoas são bem-educadas. Ainda ninguém teve coragem de lho dizer. O que é que vem fazer aqui?

AUTOR : Ora, venho assistir à peça.

ACTOR : O senhor é astrofísico?

AUTOR : Astrofísico? Não percebo o que está a dizer. Eu sou o autor da peça que o senhor vai representar.

ACTOR : O autor? Em pessoa?

AUTOR : Palavra de autor, eu próprio!

ACTOR : Hmmm! Palavra de autor…

AUTOR : Caramba, sou eu que lho digo!

ACTOR : De que é que fala a sua peça?

AUTOR : Ora… o senhor deve saber, uma vez que a vai representar… A representação começa daqui a dez minutos e o senhor está-me a pedir para eu lhe dizer de que é que fala a peça?!

ACTOR : Dez minutos, já!

AUTOR : Espero pelo menos que o senhor saiba o texto, uma vez que não sabe do que ela fala!

ACTOR : O texto? Que texto?

AUTOR : Ora bem, o texto da minha peça!

ACTOR : Ah! Então não está ao corrente? O encenador não lhe disse nada?

AUTOR : Não. O que é que ele me devia ter dito?

ACTOR : Ora bem… o firme propósito!

AUTOR : O firme propósito? O que é que quer dizer?

ACTOR : O senhor conhece muito bem o firme propósito, o firme e audacioso propósito escolhido pelo encenador.

AUTOR : Não. Não estou ao corrente.

ACTOR : Ele devia-o ter avisado, mas talvez não tenha tido tempo…

AUTOR : De que é que se trata? Que firme propósito é esse?

ACTOR : Representamos a peça… sem a dizermos.

AUTOR : Como assim, sem a dizerem?

ACTOR : Ora, sem dizermos o texto!

AUTOR : O quê?! Sem dizerem o texto!? O senhor está a dizer-me, agora que faltam apenas dez minutos para o início, que vão representar a minha peça sem dizerem o texto?! Demorei três anos a escrever esta peça, impus a mim mesmo mil privações, pus fim a todas as relações amigáveis, de vizinhança, profissionais, amorosas, epistolares, sociais, sexuais, diplomáticas, tudo o que me ligava ao mundo dos homens e das coisas bani-o da minha mente durante três longos anos, isolei-me num canto perdido da savana austral, vivi como um eremita durante todo este tempo, sem vivalma em trinta milhas ao redor, apenas alguns dípteros para me fazerem companhia e o Céu com quem falar (e apenas quando ele se dignava prestar-me alguma atenção), e tudo isto para que, a cinco minutos da representação, eu ouça dizer que vão representar a minha peça sem a dizerem!...

ACTOR : É uma opção do encenador. Temos que transcender o não-dito, repetia-nos ele muitas vezes…

AUTOR : Como é que querem transcender o não-dito se suprimem o dito?! Sem o dito, o não-dito já não vale nada.

ACTOR : Não! Mesmo com um dito fraco, podemos obter um não-dito poderoso. É a teoria do nosso encenador: a transcendência do não-dito.

AUTOR : Se bem o entendo, o meu dito é fraco!

ACTOR : Não necessariamente. A força do não-dito não está directamente ligada à do dito. Por sua vez, e é aqui que a teoria do nosso encenador se torna apaixonante, quanto menos for dito – trata-se portanto de quantidade e não de qualidade – mais o não-dito se torna extraordinariamente evocador. É o que o nosso encenador chama de transcendência do não-dito pela ausência do dito. Foi por isso que decidiu suprimir totalmente o dito, ou seja, o texto da sua peça na íntegra.

AUTOR : Então decidiram substituir todo o texto da minha peça por… nada!

ACTOR : O não-dito, não é nada… confie no encenador.

AUTOR : O quê? Isso está fora de questão! O encenador nunca me falou desta história… Tinha-me falado de outras opções, de outros propósitos firmes, como o senhor diz…

ACTOR : Ah! O senhor talvez esteja a falar do antigo encenador, daquele que se converteu ao import/export.

AUTOR : Ao import/export??

ACTOR : À importação/exportação de cogumelos florestais. Especializou-se nos lactários picantes. É um mercado promissor, ao que parece…

AUTOR : De cogumelos? O que é que vêm fazer os cogumelos na minha peça?! O senhor está-me a falar de cogumelos quando vão representar a minha peça sem dizerem uma palavra do texto… não permitirei que isso aconteça. É ilegal! Onde é que está esse novo encenador para eu lhe dizer duas palavrinhas?

ACTOR : Vai ser difícil encontrá-lo.

AUTOR : Ai sim? Porquê? Tem medo de me ver! Está para aí enterrado com os cogumelos?!

ACTOR : Está a fazer confusão: o dos cogumelos, é o outro, o que se foi embora.

AUTOR : Então onde é que está esse novo encenador, esse teórico do não-dito, para eu lhe dar um murro na tromba?!

ACTOR : Está morto.

AUTOR : Morto?! Morto no sentido de não estar vivo?

ACTOR : Morto em todos os sentidos do termo.

ACTOR : Morto! Como é possível?

ACTOR : Assassinado.

AUTOR : Assassinado? Isso é terrível. Como é que aconteceu?

ACTOR : Com uma bala de revólver. Tão banal quanto isso.

AUTOR : Mas, quem é que o matou?

ACTOR : Eu.

AUTOR : O senhor? Mas é horrível! Por que razão fez isso?

ACTOR : Estava escrito no texto.

AUTOR : Mas eu jamais escrevi tal horror!

ACTOR : Deveria ter escrito. Eu teria representado a cena com prazer…

AUTOR : Mas afinal, o senhor é completamente doido! Eu venho assistir à representação da minha peça, fico a saber que o encenador se converteu à importação/exportação de cogumelos…

ACTOR : Lactários picantes.

AUTOR : …que foi substituído por outro, e que este foi assassinado por um dos actores, por si! E a minha peça, que deve ser representada daqui a cinco minutos!

ACTOR : Calma. Acho que o senhor também se devia converter ao import/export.

AUTOR : Não passei três anos da minha vida a escrever esta peça para acabar na importação/exportação!

ACTOR : Não é vergonha nenhuma dedicar-se à importação/exportação. Até é uma actividade muito louvável e que pode trazer bom dinheiro. Basta encontrar um mercado promissor… Não há só os cogumelos… e mesmo entre os cogumelos, não existem apenas os lactários picantes. Se fosse a si, escolhia os champignons… ou os míscaros… (hesitante) é verdade que, entre estes dois…

AUTOR : Posso pedir-lhe uma coisa?

ACTOR : O quê?

AUTOR (exasperado) : Pare de me falar de cogumelos, por favor!

ACTOR : Está bem. De qualquer maneira, a peça vai começar entretanto.

AUTOR : Uma peça sem texto: é uma pantomima!

ACTOR : Isso é que não! As indicações do encenador (paz à sua alma) eram muito claras. Nem palavra, nem gesto. O não-dito adquire toda a sua profundidade apenas se for acompanhado do não-gesto. Lembro-me que um dia, durante um ensaio, em que tínhamos que permanecer totalmente imóveis e silenciosos durante longos minutos, tive a infelicidade de fazer um vago gesto com a mão, assim (mexe ligeiramente a mão e entreabre-a, depois volta a fechá-la), que heresia que eu cometi! “O senhor pensou no sentido do seu gesto?”, exclamou ele. “Mas foi apenas um ligeiro movimento da mão, perfeitamente involuntário”. “Involuntário?! O senhor pretende destruir toda a minha encenação: esse ligeiro movimento é de facto um gesticular intempestivo, susceptível de abalar o nosso firme propósito; nunca se esqueça do firme propósito, transcender o não-dito…” e recomeçávamos os nossos intermináveis ensaios, mudos e quedos como estátuas de mármore…

AUTOR : E vão representar a minha peça dessa maneira! Mas o que é que vão dizer os espectadores?!

ACTOR : Não se preocupe com isso, foram todos escolhidos a dedo. São todos astrofísicos.

AUTOR : Astrofísicos? E porquê?

ACTOR : Os astrofísicos conhecem a importância do vazio. Suspeitam que a matéria é apenas uma parte ínfima do todo, que a energia do vazio é infinitamente superior à do átomo, sabem apreciar o justo valor da quintessência…

AUTOR : Mas a minha peça nem sequer fala de átomos, de matéria, de quintessência, eu não percebo nada de cosmologia, e ainda menos de astrofísica ou de bioquímica…

ACTOR : Por isso mesmo é que eu lhe aconselho a importação/exportação. Pode fazer um estágio que o vai preparar para as técnicas da importação/exportação, em seis meses, fica armado! Com os cogumelos, por exemplo.

AUTOR : Não gosto de cogumelos. Detesto cogumelos.

ACTOR : Então escolha outra coisa. O importante é acreditar. Com cogumelos ou sem cogumelos, pouco importa. Agora tenho que o deixar, tenho que me preparar, ir para o outro lado do palco… os astrofísicos já começaram a instalar-se. Vieram do mundo inteiro. Vêm ver o espectáculo do universo, a realidade do abismo, o vazio com que sempre sonharam; vêm para compreenderem porque estão aqui, poeiras de vida no espaço-tempo; vêm ver a luz atenuar-se pouco a pouco, as estrelas desaparecer e deixar a noite condensar-se numa obscuridade impenetrável, o vazio impregnar pouco a pouco a matéria com a sua não-substância. Vão sentar-se, saborear o silêncio, entregar-se ao jogo do não-dito, e dissipar-se todos na escuridão serena e fria, todo um batalhão de astrofísicos que será inexoravelmente devorado pelas profundezas do esquecimento e do vazio… Chegou a hora de se juntar aos astrofísicos, a peça vai começar.

fin




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